Resenha do livro “A grande transformação: as origens políticas e econômicas de nossa época de Karl Polanyi
Autor: Fernando Rodrigo Farias
Professor da graduação e pós graduação do curso de Geografia da UFMS/CPAQ – Coordenador do Observatório de Geoeconomia e Análise socioespacial regional.
“Uma classe para se manter na liderança é determinada pela amplitude de interesses que ela abraça, inclusive seus interesses. Uma classe de cunho egoísta que só considera os seus interesses não se mantém na liderança a não ser que o objetivo seja a destruição” (Polanyi 2021.p, 237).
1-Considerações iniciais
Uma resenha caracteriza-se por tanto descrever uma obra quando analisar as ideias sempre procurando preservar as ideias originais do autor, sendo que a abstração do conteúdo do livro está vinculada ao entendimento do autor da resenha, outra leitura poderá observar outros pontos. As observações querem achamos pertinentes envolvendo outras obras que complementam ou expandem o entendimento estão inseridas em notas de rodapé.
Nas palavras de César Benjamin (revisor técnico da obra traduzida pela editora Contraponto – 2021), esta obra é considerada um marco na história das ciências sociais no século XX, por apresentar características peculiares, como a combinação de economia, história, antropologia e sociologia, além de descrever a formação histórica da humanidade nos séculos XVIII e XIX, e o colapso na primeira metade do século XX. Nesse período, a humanidade construiu uma sociedade baseada em quatro grandes pilares:
- O mercado autorregulado
- O padrão-ouro
- O estado liberal
- O poder baseado nas potências europeias
O livro de Karl Polanyi é composto por 411 páginas, incluindo notas e referências, e 21 capítulos divididos em quatro grandes partes. É importante destacar que a elaboração de uma resenha de uma grande obra exige muita responsabilidade. Afinal, como afirmam os autores dos itens pré-textuais, trata-se de uma obra de um grande pensador que o século XX nos presenteou. Como afirmou o professor Claus Germer (UFPR) em 2011, uma grande obra precisa ser enfrentada, o que, naturalmente, implica correr certos riscos.
É impossível abordar todos os itens centrais de uma obra desse porte. Portanto, após a leitura e anotação das principais ideias, foram tomadas decisões sobre quais temas seriam mais relevantes para a resenha. Os principais tópicos recorrentes no livro são:
- A transição das características da sociedade entre os séculos XVIII, XIX e o início do século XX
- O mercado autorregulado/liberalismo econômico
- Caracterização das sociedades que experimentaram o fascismo
- Dinâmica do perfil dos conflitos entre as nações nos séculos XVIII, XIX e XX
- O grande colapso da década de 1930
Entre outros temas relevantes.
Embora a obra de Karl Polanyi tenha sido escrita ainda na década de 1940, ela é considerada, pelo renomado economista contemporâneo Joseph E. Stiglitz, uma obra extremamente atual. Ela conserva grandes temas que permanecem em evidência nos debates atuais, como a eficácia ou não dos mercados autorregulados, frequentemente recomendados pelos países centrais aos países em desenvolvimento. Outro exemplo é a crítica às políticas liberais, amplamente difundidas, mas que não são praticadas nas potências mundiais.
Além do conteúdo de um livro que atravessa décadas e continua sendo leitura indispensável para entender os principais desdobramentos econômicos e sociais do século XXI, a obra conta com um prefácio primoroso escrito por Joseph E. Stiglitz, economista norte-americano e prêmio Nobel de Economia em 2001.
A obra também apresenta uma introdução de Fred Block, sociólogo americano e professor da University of California, Davis. Parte significativa de seus trabalhos é fortemente influenciada pelas obras de Karl Polanyi. Além de um texto analítico sobre A Grande Transformação, Fred Block nos oferece uma breve biografia de Karl Polanyi.
A metodologia adotada para a elaboração desta resenha consistiu em:
- Leitura e sistematização dos principais pontos abordados na obra
- Leitura de textos e capítulos de obras complementares que esclarecem temas pertinentes tratados no livro
- Produção textual da resenha
2-Elementos do prefácio escrito por Joseph E. Stiglitz sobre a obra A grande transformação.
Podemos afirmar que os autores, tanto do prefácio quanto da introdução, introduzem de forma brilhante o que a obra nos apresentará. Para Stiglitz, a obra de Polanyi descreve com maestria a grande transformação da civilização europeia, do período pré-industrial até o período da industrialização. Ela aborda o caminho histórico das mudanças de ideias, das ideologias e das políticas econômicas e sociais.
Um ponto de análise que aparece com muita frequência na obra de Karl Polanyi é o debate em relação à dinâmica dos “mercados autorregulados” com restrições de intervenções. Segundo Stiglitz, os conservadores obstinados costumam defender a economia autorregulada, em uma extrema (com base nas leis do mercado) ou, do outro lado, defendem a economia dirigida pelo Estado, onde geralmente as condições econômicas com viés ideológico e de interesses particulares vêm disfarçadas de ciência econômica, sendo apontadas como boas políticas[1].
Uma das abstrações explícitas que aparece tanto nos elementos pré-textuais como no texto do próprio Polanyi é o fato de que, no passado, a produção e a distribuição de bens materiais historicamente estiveram enraizadas em relações não exclusivamente econômicas. Com o desenvolvimento do capitalismo, onde tudo se tornou mercadoria, ao invés da economia estar enraizada nas relações sociais (onde as políticas econômicas criadas servem para equilibrar e resolver os problemas sociais), as relações sociais passaram a ser reféns do sistema econômico, sendo, atualmente, reféns do sistema financeiro (grifo nosso).
Para Stiglitz, a obra de Polanyi é fundamental para entender o mundo atual, que, nas suas palavras, “nos dá a impressão de que Polanyi está falando de problemas atuais”.
O fato de existir um dilema em relação à eficácia ou não dos mercados autorregulados (sem intervenção) faz parte da essência do livro de Karl Polanyi e corrobora com as palavras de Stiglitz, de que a liberalização do comércio, aliada a altas taxas de juros, torna difícil a criação de novos empregos ou novas empresas, justamente pela inversão de fatores. Ou seja, setores produtivos, passíveis de criação de mercadorias e empregos, foram substituídos pelo setor financeiro especulativo, que majoritariamente cria valor e não mercadorias que ocupam maior número da força de trabalho. Para os capitalistas, menos salários significam mais lucros; porém, para os economistas, isso significa mau funcionamento da economia, configurando, portanto, um dilema prático.
Para Stiglitz, a leitura e o entendimento da obra de Karl Polanyi são importantes para dar continuidade ao debate de que o “mito da economia autorregulada está praticamente extinto”, sendo uma das grandes responsáveis por gerar desigualdade, desemprego, pobreza, privações, problemas de coesão social, além do aumento da violência.
Stiglitz cita fatos e ações importantes nos Estados Unidos, como a instalação da primeira linha teleférica, financiada pelo governo americano em 1842. Além disso, a expansão tecnológica agrícola naquele país ocorreu graças ao desenvolvimento de pesquisas, ensino e serviços de extensão rural, todos financiados pelo governo. No entanto, os organismos do Consenso de Washington costumam afirmar, ao contrário, que a intervenção do Estado é a origem dos problemas sociais e que o segredo é alinhar os preços e livrar o governo da economia. O conceito de desenvolvimento para as instituições de Washington e os defensores do liberalismo é acumular capital e aumentar a eficiência da alocação dos recursos em uma operação puramente técnica.
No texto do prefácio escrito por Joseph E. Stiglitz, o autor faz alusão aos países do Leste Asiático, que são os únicos exemplos de países que tiveram sucesso no seu desenvolvimento justamente quando os governos assumiram um papel abertamente central e reconheceram que manter a coesão social é fundamental. O autor afirma, baseado na história do capitalismo, que a chamada economia de mercado autorregulada pode evoluir para um capitalismo de máfia. O próprio Karl Polanyi, em um de seus capítulos, mostrará que o mau funcionamento do capitalismo baseado na economia de mercado levou a humanidade, no século XX, ao que ele chama de “solução fácil”, ou seja, ao fascismo.
Sobre a temática das privatizações, fator muito alimentado pelo liberalismo econômico, Stiglitz afirma que privatizar é fácil: basta dar os bens estatais aos amigos e, em troca, recolher as comissões. Nas palavras de Stiglitz, fala-se muito aos países em desenvolvimento sobre como é importante a democracia; no entanto, quando se trata da economia — fator de maior interesse a esses países, afinal, afeta seus meios de subsistência —, a resposta dada a eles é que as leis de ferro da economia limitam suas escolhas.
3- Principais elementos do texto da introdução escrito por Fred Block
A introdução do livro de Karl Polanyi, da tradução brasileira (2021), foi escrita pelo sociólogo americano Fred Block. O autor da introdução, além de uma análise introdutória do que o leitor terá pela frente, traz também uma breve biografia de Karl Polanyi. Para Block, a obra A Grande Transformação se recusou a desaparecer, mesmo tendo sido escrita em 1940, justamente por fazer uma crítica ao liberalismo e ao mercado liberal como sua principal crítica, um fator muito presente nos debates atuais ao redor do mundo.
A vida de Polanyi, segundo Block, foi marcada por diversos enfrentamentos de cunho ideológico, que lhe causaram muito mal-estar em sua carreira. O autor da introdução nos conta que Karl Polanyi foi convidado a se retirar da direção do seminário econômico e financeiro da Europa, chamado Der Österreichische, no qual era chefe editor, quando Hitler chegou ao poder na Alemanha.
Com a chegada do nazismo à Alemanha, Polanyi foi trabalhar na Inglaterra como professor em uma associação educacional de trabalhadores. Foi nessa função de preparação das aulas que ele mergulhou na história da economia inglesa. Para Block, a obra A Grande Transformação seria uma fusão entre a crítica à economia social inglesa e as ideias de dois autores liberais famosos – Mises e Hayek. O livro foi escrito enquanto Polanyi era professor visitante na Universidade de Bemington, em Vermont, nos Estados Unidos, graças a uma bolsa de estudos da qual foi contemplado em 1940.
Natural da Hungria, o ciclo de vida de Polanyi foi intenso, passando por Budapeste (Hungria) – Viena (Áustria) – Inglaterra e Estados Unidos. O texto de Block é sensacional em vários sentidos. Primeiro, nos traz um relato da vida pessoal de Karl Polanyi e também traz informações relevantes tanto sobre a organização do livro quanto sobre suas principais problemáticas abordadas.
Block nos mostra e antecipa uma série de elementos que o livro irá tratar nos seus mais rigorosos detalhes, como as circunstâncias imediatas que a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão causaram para a humanidade, passando também pela ascensão do fascismo na Europa até o New Deal nos Estados Unidos.
Uma grande questão que o autor da introdução nos antecipa e deixa claro é o fato de que a base central da crítica de Karl Polanyi é a teoria do liberalismo e como a sociedade passou a se subordinar aos mercados autorregulados durante o século XX, sendo que, no período anterior (século XIX), a economia estava enraizada na sociedade e não o contrário. Como as bases teóricas vastas, que vão desde a história, antropologia e teoria social, fazem, segundo Block, uma abordagem “digna de grandes pensadores”, não se enquadrando em “padrões generalizados”.
Exemplo disso é o fato de que, segundo Block, Polanyi concordava em muitas coisas com Keynes em relação ao liberalismo de mercado, mas não seria um keynesiano – identificava-se como socialista, mas tinha divergências em relação aos determinismos econômicos – divergindo principalmente do chamado “marxismo convencional”.
Podemos afirmar que os autores das partes pré-textuais da obra de Karl Polanyi foram muito acertados. Como foi afirmado, além de trazerem elementos importantes sobre o autor, afinal, Karl Polanyi faz parte dos grandes teóricos que influenciaram a formação teórica tanto de Joseph E. Stiglitz (autor do prefácio) quanto de Fred Block (autor da introdução).
4-Considerações sobre os principais elementos abordados na obra “A Grande transformação” de Karl Polany.
O livro de Karl Polanyi é uma grande oportunidade para entender importantes elementos da natureza econômica e social que envolvem a transição dos séculos XVIII/XIX para o século XX. O autor inicia com uma viagem histórica pela chamada “Paz de Cem Anos” no século XIX, que é um dos fatos históricos fundamentais para tratar e entender a organização do mundo na transição do século XIX para o XX.
Ao longo de sua argumentação, podemos abstrair o entendimento de um dos fatores mais centrais que o autor destaca: o fim dos “mercados autorregulados”. As narrativas dos fatos históricos que Polanyi trata entre as páginas 47 a 70 mostram uma série de evidências de que a economia de mercado da Europa Ocidental, de certa forma, sofreu interferências institucionais que mantinham a dinâmica econômica e social em funcionamento, portanto, ao contrário do discurso liberal.
Polanyi mostra em detalhes como a civilização no final do século XIX desmoronou, dando fim ao arcabouço que garantiu, entre aspas, a paz no século, ou seja, o fim do sistema de equilíbrio de poder que assegurava a paz relativa.
Para isso, o autor aponta quais foram as instituições que apoiavam a civilização no século XIX:
- Sistema de equilíbrio de poder
- Padrão-ouro, que funcionava como um padrão internacional, atuando como um “símbolo de uma organização única da economia mundial”
- Mercado autorregulado
- Estado liberal
De acordo com o autor (exposto na página 52), ruiu-se a tese forte do período de que o mercado era capaz de ajustar-se a si mesmo, chamando-a de “flagrante utopia”. Uma instituição dessa natureza (autorregulação) não teria como existir de maneira duradoura; afinal, para isso seria necessário avançar no aniquilamento da vida humana. No decorrer dos capítulos posteriores, Polanyi mostra com detalhes como a intervenção (um fator caro para o mercado autorregulado) foi necessária para manter o sistema complexo funcionando — ponto importante que o livro nos traz.
Para Polanyi, a ideia de mercado autorregulado seria uma tentativa de reduzir a civilização “à sua substância e seu Ethos” a um número reduzido de instituições controladoras, quando, na verdade, o resultado da organização das civilizações é fruto da interação complexa de um grande número de fatores, muitas vezes de forma independente.
Para os amantes da história e dos detalhes dos conflitos entre nações, o livro funciona como um avanço nessa abstração histórica. Polanyi relata com detalhes clínicos o “fenômeno inédito” da chamada “Paz de Cem Anos” no século XIX (1815-1914), marcando até o início da Primeira Guerra Mundial, quando os efeitos estratégicos que resultaram na paz relativa cessaram.
Para Polanyi, o grande fator que ocasionou o longo período de paz no Ocidente durante o século XIX foi o que ele chamou de “equilíbrio de poder”, que nada mais foi do que a adoção de práticas entre as nações para estabelecer garantias mútuas de sobrevivência, tanto para os países considerados fortes quanto para os fracos. O autor sinaliza com detalhes o fato de que, durante o século XIX, o “equilíbrio de poder” garantiu a paz relativa, enquanto no século XVIII o período de paz foi garantido por intermédio da guerra.
Outro ponto importante destacado pelo autor é o fato de que os mesmos mecanismos que geraram guerras durante o século XVIII, no século XIX acabaram gerando o período de paz. Segundo Polanyi, o movimento de paz se intensificou a partir de 1815, principalmente com os desdobramentos da Revolução Francesa e o avanço da Revolução Industrial.
A dinâmica e os efeitos revolucionários da Revolução Francesa antenaram a sociedade dominante do século XIX. Nas palavras do autor, “negócios pacíficos eram de interesse universal”. No entanto, o lema da paz do século XIX, de acordo com Polanyi, era “queremos paz, não liberdade” — frase proferida por Metternich (chanceler austríaco) aos povos europeus. Nas palavras de Gentz (diplomata prussiano), citado por Polanyi, o fato de quererem paz sem liberdade caracterizaria apenas os “novos bárbaros”.
O autor mostra durante o capítulo que quem se beneficiou com o movimento de paz foram os carteis de dinastia e senhores feudais. A paz passou a ser importante, afinal, as ondas revolucionárias na Europa (Revolução Francesa[2]) ameaçavam seu patrimônio por isso o adepto a paz naquele período.
O autor mostra as principais instituições que encabeçaram o movimento de paz. Uma delas era a chamada “Santa Aliança”, organizada pela Igreja Romana. No entanto, as estratégias utilizadas para manter a paz eram relativas, como já destacamos. Ou seja, segundo Polanyi, nos templos rezavam por paz e “boas colheitas”, mas, na prática, forneciam força coercitiva e inspiração ideológica para uma ativa política de paz. Durante um terço do século XIX, exércitos circulavam de ponta a ponta na Europa. Nas palavras de Polanyi, “sufocando minorias e reprimindo maiorias”.
Outro movimento importante relatado por Polanyi que foi responsável pelo movimento de paz no século XIX foi a organização chamada “Concerto da Europa”. Este movimento surgiu após o quarto de século XIX, posterior à Guerra Franco-Prussiana, onde a força do industrialismo passou a surgir com o interesse pela paz.
Para o autor, tanto a Santa Aliança quanto o movimento do Concerto da Europa não objetivaram alterações de cunho social. O que representaram, de fato, foram “meros agrupamentos de estados soberanos”. A paz foi mantida pelos instrumentos de equilíbrio de poder já citados, sem o realinhamento ou alteração do status quo.
O autor cita também o caso de 1877-1878, quando a Alemanha não conseguiu evitar a Guerra Russo-Turca, mas conseguiu circunscrevê-la, apoiando a Inglaterra contra a movimentação russa em direção à região dos Dardanelos.
Parte do movimento de paz no século XIX foi alcançada em função da utilização da estratégia de prevenção ocasional de guerras, utilizando a relação de forças para coagirem os estados menores. O aumento da riqueza e da população, ou até mesmo o seu decréscimo, acabaram ocasionando forças políticas, e a Santa Aliança desempenhou um papel importante nesse processo.
De acordo com Polanyi, havia uma rede internacional envolvendo até mesmo parentescos entre reis e aristocratas, o que facilitava o movimento de paz. No entanto, o autor é enfático em afirmar a importância da Igreja Romana, que prestou um serviço voluntário em todos os níveis da sociedade.
O autor explica que um dos fatores da paz dos 100 anos foi o fato de ser de interesse universal a eliminação das causas da guerra. A Santa Aliança funcionou como uma unidade de pensamento que conseguiu manter essa paz na Europa com a ajuda frequente de intervenções armadas, o que foi ampliado a nível mundial.
Outro instrumento social surgido no século XIX que possui relação com o movimento de paz citado pelo autor é o chamado “Haute Finance”. De acordo com Polanyi, este instrumento acabou desempenhando o papel das dinastias e episcopados no passado. Ele funcionava como um elo entre a organização política e econômica do mundo.
Se o Concerto da Europa agia nos intervalos, o Haute Finance possuía uma ação muito mais elástica. O segredo da paz, segundo Polanyi, era que o mundo no século XIX possuía uma organização e técnicas de finanças internacionais que favoreciam esse movimento de paz. O autor cita o caso da dinastia de banqueiros judeus que possuíam sua rede de bancos nas principais capitais da Europa e, no passado, haviam feito fortunas financiando guerras. Mas “não faziam objeção a guerras pequenas, breves ou localizadas”; no entanto, se houvesse uma guerra generalizada entre países, seus negócios seriam duramente prejudicados.
O que podemos interpretar sobre o conceito de Haute Finance é que ele seria uma espécie de agrupamento financeiro das nações que praticavam não apenas o financiamento das guerras, mas também de diversas outras áreas da atividade humana, como a indústria e o comércio. No entanto, o Haute Finance não foi concebido como um instrumento de paz — “essa função lhe coube por acaso”. Ou seja, o objetivo era lucrar com o movimento de paz. A paz foi garantida pelos interesses dos bancos.
De acordo com Polanyi, o que ocorreu foi uma “paz armada” (1871-1914), envolvendo vários estados mobilizados. Nas palavras do autor, se antes o comércio pertencia ao poder militar bélico, ou era apêndice de piratas, caravanas armadas, mercadores, burgueses armados, colonizadores e conquistadores, exércitos coloniais, durante o século XIX, esse comércio passou a depender do sistema monetário internacional, que não funcionava bem com guerras generalizadas. Portanto, o momento histórico exigia paz entre as grandes potências.
Cabe destacar uma análise de Polanyi, quando ele faz uma diferenciação do perfil das guerras entre os séculos XVIII e XIX. Um ponto que fica explícito é o papel do setor financeiro nas guerras. Nas palavras do autor, “quase todas as guerras foram organizadas por financistas, mas a paz também foi organizada por eles”.
A paz relativa/por conveniência durante o século XIX é um ponto que diferencia a análise das guerras no modo de produção capitalista. Segundo o próprio autor, sempre fomos acostumados a pensar e interpretar o capitalismo como algo nada pacífico, afinal, há inúmeras evidências históricas de crimes coloniais e outras agressões expansionistas instigadas pelo sistema financeiro. No entanto, repetindo a afirmação que o autor faz, é importante notar que a paz foi “por acaso”.
Segundo Polanyi, foi com base nessas características do capitalismo que Lenin afirmou que “o capitalismo financeiro era responsável pelo imperialismo”. Nas palavras do autor, o próprio nacionalismo e industrialismo (que se tornará mais explícito no século XX — grifo nosso) tornaram as guerras mais ferozes. No entanto, o sistema financeiro “erigiu-se” (construiu-se) como garantidor da eficácia e continuidade dos negócios do sistema em tempo de guerra.
O que fica claro é que a configuração do mundo no século XIX não era suficientemente garantidora para a manutenção dos negócios em tempo de guerra. Polanyi cita Hershy, que afirma que as guerras da Revolução Francesa, ao causarem o confisco de propriedade privada (2ª fase da Revolução Francesa — grifo nosso) de súditos de países inimigos, despertaram a objeção ao movimento de paz relativa no século XIX.
É importante destacar qual era o “pano de fundo da paz de 100 anos”, que teve principalmente dois momentos, segundo Polanyi. O primeiro momento foi quando as classes médias nascentes eram forças revolucionárias que ameaçavam a paz. Exemplo disso o autor cita as convulsões napoleônicas. No caso do século XIX, o autor cita a Santa Aliança, liderada pelo clero e a nobreza, que organizaram o que ele chamou de “paz reacionária”.
No segundo momento, com a chamada “nova economia” (mais globalizada, para além do Ocidente), que saiu vitoriosa, as próprias classes médias, beneficiadas pela expansão dos mercados e o consequente aumento de seu capital, passaram a se interessar pela paz. O sistema equilibrado estava a seu favor enquanto classe dominante.
O sistema de equilíbrio no século XIX, garantido pela Santa Aliança e o movimento do Concerto da Europa, com auxílio de outros artifícios já citados, atingiu seu limite no final do século XIX, quando o sistema de equilíbrio de poder chegou ao fim.
Especificamente no capítulo II do livro, Karl Polanyi trata com detalhes a dinâmica do mundo Ocidental no final do século XIX, quando se deu o fim do sistema de equilíbrio de poder praticado no século XIX.
Um dos fatos históricos bastante trabalhados pelo autor é a desintegração do sistema econômico mundial na década de 1920 e o colapso do padrão-ouro. Para Polanyi, no início do século XX, o mundo rapidamente começou a ruir. Para o autor, para os “economistas liberais”, o padrão-ouro era uma instituição puramente econômica, e havia dificuldade em aceitar que o mecanismo era parte do social.
Para Polanyi, a Primeira Guerra e as revoluções do pós-guerra ainda foram resultados dos efeitos do século XIX já relatados na primeira parte da presente resenha, ou seja, os efeitos oscilatórios e os remendos da economia mundial acabaram estourando em 1914, com a Primeira Guerra. Nas palavras do autor: “de repente, nem o sistema econômico nem o sistema político do mundo funcionavam”.
O autor faz menção aos tratados que tiraram a Alemanha da concorrência. Um deles foi o tratado de desarmamento unilateral das nações derrotadas. Provavelmente, ele se refere à França, que foi convencida por meio de um tratado entre as nações, no qual certos tipos de armamentos não poderiam ser utilizados.
Segundo Polanyi, tentou-se estabelecer uma espécie de “Concerto da Europa ampliado”, referindo-se ao tratado da Liga das Nações, firmado em Genebra (Suíça), no pós-Primeira Guerra Mundial — resultado em vão, nas palavras do autor. No fundo, o mundo tentava manter o movimento de paz típico do século XIX em um mundo onde o equilíbrio das forças, por meio da economia, já havia sido desintegrado (grifo nosso).
Segundo Polanyi, os resultados do pós-guerra foram terríveis para a Europa[3], afinal, na ocasião, ela estava sem qualquer sistema político definido. É interessante observar, durante o conteúdo exposto no capítulo 2, a dificuldade que o centro dinâmico do mundo da época encontrava em manter a paz, afinal, o sistema econômico se encontrava desintegrado no início do século XX. Se, no século XIX, a paz resultava em rendimentos econômicos, principalmente para o setor financeiro, no século XX, havia a necessidade urgente de restaurar a economia mundial, bastante abalada com o colapso do padrão ouro.
No início do século XX, o interesse pela paz era menor devido aos câmbios instáveis e à falta de liberdade comercial – a paz só seria bem-vinda, desde que não interferisse nos objetivos individuais das nações envolvidas. A Haute Finance do século XIX (já definida) no século XX era representada pelo grupo J.P. Morgan (EUA), e não mais pelos N.M. Rothschild (dinastia de banqueiros europeus do século XIX).
O autor apresenta importantes informações acerca do grande colapso dos anos 1930, o qual gerou alguns efeitos para a Europa, dentre os mais importantes citados, foram: • Empobrecimento da classe média intelectual (responsável pelos movimentos revolucionários do século XIX); • Em contrapartida, os “tubarões das finanças” acumularam fortunas incalculáveis com o grande colapso; • O padrão do livre comércio causou problemas nos países centrais. Queria-se o livre comércio mundial para manter as moedas estáveis, mas, nas palavras de Polanyi, “a maioria dos países adotaram cotas de importação, moratórias, acordos de congelamento, acordos bilaterais de comércio exterior”. A liberação do livre comércio gerou, na verdade, estrangulação.
Em nosso entendimento, o que esta parte do livro nos mostra é que, após o colapso da década de 1930, cada país acabou fazendo seus esforços para manter um fluxo mínimo de comércio, ou seja, medidas foram adotadas para proteger o valor externo das moedas na tentativa de sobreviver sem o apoio externo – o que dificultou a concretização do modelo exposto no movimento do livre comércio.
Se o objetivo no pós-guerra era o retorno do livre comércio, a situação, nas palavras de Polanyi, “sofreu uma reversão abrupta com o fim da definição do padrão ouro”.
Segundo Polanyi, com o fim do padrão ouro, houve a destruição completa das antigas instituições criadas pelos estados nacionais no século XIX. Em vários lugares do mundo, essas instituições liberais foram modificadas e, em muitos casos, substituídas por ditaduras totalitárias.
Esse é um dos pontos que Polanyi aponta como um fator da grande transformação. O fracasso do sistema internacional de equilíbrio, muito presente desde o século XIX, resultou no fracasso do modelo liberal, que foi substituído por outro modelo, a chamada “nova economia”, que, posteriormente, possibilitou guerras sem precedentes.
Uma das bases centrais do conteúdo da obra de Polanyi como um todo é de muita valia para entender os movimentos conservadores e revolucionários do mundo entre 1920 e 1930. Traz indicações primorosas sobre o complexo tema do colapso do padrão ouro e a dinâmica social e econômica das nações que transformaram o mundo a partir do século XX. Mostra também os motivos e razões para os acontecimentos que marcaram os fatos históricos do século XX. Exemplos são os desdobramentos do fascismo alemão que, segundo Polanyi, as contestações que a Alemanha fez aos tratados do pós-Primeira Guerra e a expropriação da classe rentista possibilitaram o “lançamento das bases do nazismo”.
O autor discute os desdobramentos do socialismo russo e o New Deal dos Estados Unidos, decorrentes do mesmo período histórico (uma evidência histórica de que havia países diferentes com estratégias diferentes – sem espaço para o liberalismo de mercado generalizado). Segundo Polanyi, uma opção que ainda precisa ser comprovada, mas que é relevante, é o fato de que as origens do cataclismo (referindo-se ao fim do padrão de equilíbrio) e seus motivos “encontram-se no esforço utópico do liberalismo econômico para estabelecer um sistema autorregulado”.
Para Polanyi, a ideia de equilíbrio de poder, padrão ouro e estado liberal do século XIX existiram sob os moldes do mercado autorregulado, mas de forma irregular, com ocorrências diferentes entre os países. Um ponto importante que vale muito a pena para aqueles que desejam aprofundar as bases do fascismo alemão é o fato de que, para Polanyi, para entender o fascismo alemão, é necessário retornar à dinâmica histórica do país da 1ª Revolução Industrial (Inglaterra), que possui base teórica em David Ricardo. Para o autor, a Revolução Industrial inglesa possuía “ânsia do capitalismo de buscar o lucro a todo custo, inclusive utilizando instituições religiosas”.
Os capítulos do livro de Karl Polanyi apresentam uma excelente sincronia: se no capítulo anterior tratou do fim do século XIX e o grande colapso da crise da década de 1930, nos capítulos 3 e 4, trata da ascensão e queda da chamada economia de mercado e da sociedade e sistemas econômicos da Europa Ocidental.
O autor faz uma série de considerações que são cruciais para entender a dinâmica da Revolução Industrial inglesa. Para o autor, a economia inglesa é a chave inicial para entender a dinâmica do livre comércio.
Para Polanyi, foram os ingleses que inventaram o liberalismo econômico e, por meio da teoria liberal, mas, interpretaram mal a história da Revolução Industrial, pois consideraram apenas os efeitos econômicos e não os efeitos negativos que a política do cercamento causou à sociedade inglesa. Segundo o autor, os efeitos foram terríveis, pois deixaram “condados inteiros sob a ameaça de despovoamento”.
Mas o autor esclarece o fato de que esta política (cercamento) gerou “aprimoramento econômico não regulado”.
“Os cercamentos seriam uma melhora evidente, se não houvesse a conversão das terras agricultáveis em pastagens. As terras cercadas valiam duas ou três vezes mais que as não cercadas. Nos lugares em que se manteve o cultivo da terra, o emprego não diminuiu e a oferta de alimentos cresceu. A rentabilidade da terra aumentou, especialmente nos locais em que ela era arrendada” (POLANYI, 2021, p. 88).
Em se tratando da análise do mercado autorregulado, o autor traz uma observação importante de que, no mundo liberal, existe a “crença no progresso espontâneo”, mas, normalmente, se esconde o papel do governo na vida econômica. A velocidade da mudança econômica é importante, mas definir a direção também é fundamental, e o governo tem o papel de alterar o ritmo da mudança, ajustando sua velocidade.
Quando o autor trata da dinâmica da sociedade e dos sistemas econômicos, ele faz uma crítica a uma famosa frase de Adam Smith em relação à denominação de “homem econômico”. Para Smith, o homem sempre teve a “propensão humana para negociar, transacionar e comerciar uma coisa por outra”, se referindo ao mercado. Nas palavras de Polanyi, essa frase é uma falácia, pois “embora a instituição do mercado exista desde o final da Idade da Pedra, seu papel sempre foi secundário na vida econômica, referindo-se aos povos antigos”.
Segundo Polanyi, a partir da metade do século XIX e início do século XX, essa falácia foi repetida por vários autores de cunho liberal. Nas palavras de Polanyi, Adam Smith induziu seus seguidores a ter uma interpretação estranha da espécie humana em sua condição primitiva, sem perceber que as características do homem primitivo apresentavam menos uma “psicologia capitalista” e mais um caráter comunitário.
Para Polanyi, o que faltou para esse tipo de análise foi “relacionar a história econômica e a antropologia social, caminho que foi sistematicamente evitado”. O autor, para contrapor essa frase, relata a organização de várias sociedades tribais no mundo. Para ele, “tal atitude subjetiva perante as civilizações anteriores não deveria atrair a mente científica”. Segundo Polanyi, o que comprova que a frase é uma falácia é o fato de que os selvagens nunca foram individualistas como a sociedade da economia de mercado. Os selvagens nunca caçavam sozinhos ou para sua família, mas para seu grupo.
O que Karl Polanyi quer nos dizer é que a sociedade primitiva se vinculava à coletividade, enquanto a sociedade contemporânea se vincula à economia de mercado. Para o autor, o “princípio de redistribuição e reciprocidade” se perdeu à medida que as sociedades avançaram – “todos os sistemas econômicos que conhecemos até o fim do feudalismo na Europa Ocidental se organizaram com base nos princípios da reciprocidade, da redistribuição ou da domesticidade”.
Para Polanyi, o sistema de mercado controlado foi o responsável pela transformação da sociedade em um anexo do mercado. O sistema econômico passou a ser organizado em instituições separadas – cada uma com seu estatuto e interesses próprios. Por isso, “a sociedade tem que ser moldada de modo a permitir que esse sistema funcione de acordo com suas próprias leis”. A afirmação de que “a economia de mercado só pode funcionar em uma sociedade de mercado” é uma consequência disso.
Para o autor, o sistema transformou mercados isolados em uma economia de mercado. Até o século XIX, entendia-se que esse fenômeno seria resultado de um processo natural. Depois, percebeu-se que isso seria realizado por meio de “efeitos estimulantes artificiais administrados ao corpo social”. Ou seja, havia, naquele período, contrariando a ideia central do mercado autorregulado, intervenção do Estado, regulamentação do comércio. O mercantilismo quebrou a barreira entre o comércio entre o campo e a cidade, abrindo caminho para o mercado nacional.
Um dos pontos centrais que Polanyi trata, com várias evidências históricas, é a inexistência do mercado autorregulado. O autor faz menção à história de como o comércio se tornou amplificado. Ele aponta que foi o próprio mercantilismo que criou regulamentações comerciais para combater algo muito temido: o monopólio. Havia controle da concorrência para evitar os monopólios, que eram temidos, pois, segundo Polanyi, a falta de concorrência, devido aos monopólios, afetava as necessidades mais vitais da vida e era considerada um perigo para a sociedade. Para resolver essas inconformidades, que poderiam alterar a demanda, os preços e a vida das pessoas, surgiu “a completa regulamentação da vida econômica, que foi um remédio encontrado”.
O autor destaca o aprofundamento da dinâmica social e econômica que a Revolução Industrial causou na Inglaterra. Mostra, por exemplo, que, apesar de os ingleses serem os criadores do liberalismo, como afirmou o próprio autor, o livro A Grande Transformação apresenta, com detalhes, uma série de medidas assistencialistas que foram utilizadas tanto para evitar o pauperismo extremo quanto para controlar o mercado de trabalho.
Uma das medidas mais famosas foi a chamada Lei dos Pobres, criada para amenizar a pobreza extrema na Inglaterra. Segundo Canning, citado por Polanyi, “a Lei dos Pobres salvaria a Inglaterra de uma revolução”.
As medidas assistencialistas foram, de certa forma, intervenções estatais que contrariavam a ideia de mercado autorregulado, que se mostrou incapaz de resolver os problemas da fome, pobreza e desestruturação social causados pela Revolução Industrial. Na ocasião, foi aprovada a Lei Speenhamland, que nada mais era do que um subsídio estatal pago aos trabalhadores para adquirir bens de subsistência, mediante a ultraexploração do mercado de trabalho. O valor pago aos trabalhadores estava vinculado aos preços de alimentos básicos, a exemplo do pão.
Um ponto importante destacado no livro é o fato de que houve críticas por parte dos liberais a essas medidas de assistência social na época. Havia a discussão de que essas medidas impediam a Inglaterra de criar seu mercado interno de trabalho, apontando a lei inclusive como uma “calamidade”.
Posteriormente, a lei foi abolida, marcando o nascimento da classe trabalhadora moderna, que surgiu no mesmo período da classe trabalhadora da economia de mercado.
Um destaque importante apontado por Polanyi é o fato de que os efeitos da Lei de Speenhamland no mercado de trabalho fizeram com que, por gerações, na Inglaterra, houvesse “ódio ao amparo público, desconfiança da ação estatal e insistência na respeitabilidade e em contar com as próprias forças”, características dos trabalhadores britânicos durante gerações.
É concordável quando Joseph Stiglitz menciona no prefácio que, ao ler Polanyi, dá a impressão de que estamos falando de problemas contemporâneos, ou seja, o liberalismo econômico, que ainda continua sendo debatido na atualidade. Outro ponto importante é em relação à pobreza. O autor situa o conceito de pobreza, que, para a visão medieval, não era um grande problema, por conta do modelo de “redistribuição e reciprocidade”, mais presente em épocas remotas. Já a visão dos ingleses no período dos cercamentos era de que ser desempregado era coisa de gente preguiçosa.
Segundo Polanyi, foram os Quacres (grupo religioso protestante inglês do século XVII) os primeiros a entender que a pobreza e o desemprego eram causados por falhas na organização do trabalho. Havia uma frase famosa na Inglaterra que dizia: “O trabalho do pobre é a mina do rico”. Uma observação interessante que Polanyi menciona no livro é uma série de alternativas criadas na época para amenizar o pauperismo social. Cita as vilas de união, criadas por Robert Owen, precursor do sistema de cooperação no mundo, onde desenvolveu projetos de assistência mútua que foram transformados em ações de fins lucrativos por capitalistas. Essas medidas, como as de Owen, foram consideradas como contramovimento que amenizaram um problema que poderia ser ainda pior, caso o mercado fosse deixado para se autorregular.
Para Polanyi, Robert Owen não queria a revolução, mas a reforma capitalista, onde seu sistema de cooperação e bem-estar social do trabalhador acabou gerando grandes cifras financeiras de lucros a grupos capitalistas privados. Suas ideias foram excluídas, mas, se tivessem sido utilizadas, teriam produzido resultados diferentes em relação à estrutura social e econômica na Inglaterra.
O pauperismo, assim como hoje no século XXI, é um fator rentável. Naquela época, também o era. De acordo com Polanyi, havia uma frase muito difundida na época que dizia que era um desserviço à nação empregar pobres no serviço público, afinal, havia dúvidas se a pobreza era boa ou má. Nesse sentido, Polanyi mostra que foi na transição dos séculos XVII a XIX que o trabalho começou a ser tratado como mercadoria. A fome passou a ser tratada como um processo inerente ao sistema. A pobreza foi vista como uma utilidade para manter a abundância – outra frase conhecida na Inglaterra era de que “o que seria da pátria sem os pobres”.
Polanyi dedica um capítulo inteiro para explicar o nascimento do que ele chama de “credo liberal”. O autor mostra que o liberalismo nasceu como tendência de métodos burocráticos e tornou-se um objeto de fé garantidor com promessas de salvação através do mercado autorregulado. O autor aponta que, na Inglaterra, o “laissez-faire” recebeu uma interpretação “estreita”, pois retirava-se a regulamentação da produção, mas não do comércio, que era tratado com protecionismo.
Um exemplo apontado é o caso da indústria têxtil, através de seus cotonifícios, que atingiram status de grande importância na indústria exportadora, mas eram proibidos de importar tecidos estampados. O protecionismo era tão grande que os fabricantes de fios de algodão ingleses, de Manchester, cogitaram, na época, proibir a exportação, mesmo sabendo das perdas financeiras. Em 1971, foi aprovada uma lei estabelecendo punições para a exportação de ferramentas usadas na manufatura de algodão. Ou seja, para Polanyi, “o livre comércio na origem da indústria algodoeira é um mito”. Queriam a desregulação da produção, mas não do comércio, que era protecionista.
O autor também mostra como as leis de assistência ao trabalhador enfrentavam críticas dos liberais por dificultarem a formação do mercado de trabalho e, segundo eles, causarem a escassez de mão de obra livre. No entanto, Polanyi mostra que a indústria algodoeira se beneficiou muito da antiga Lei dos Pobres, pois foi útil para os fabricantes que “se isentaram da responsabilidade de seus desempregados”, empurrando o ônus para os fundos públicos.
Polanyi aponta que, na década de 1830, quando o liberalismo se tornou uma “cruzada apaixonada”, o patronato voltou a reivindicar a reforma das leis de assistência, pois não se fazia o “exército de reserva industrial”.
“Os mercadores livres nunca poderiam ter surgido pelo livre curso das coisas. Assim como os cotonifícios – a principal indústria do livre comércio – haviam sido criados como ajuda de tarifas protecionistas, incentivos à exportação e subsídios salariais indiretos”. (Polanyi. 2021.p, 215)
O livro de Polanyi, ao abordar a temática do livre mercado e do mercado autorregulado, gradualmente desmonta a argumentação liberal, que não possui sustentação histórica ou prática. O que se observa são promessas burocráticas de uma realidade que não corresponde ao mundo econômico, o qual é composto por “múltiplas combinações” (grifo nosso).
Polanyi (2021, p. 216) aponta que o suposto liberalismo foi, na realidade, gradualmente fortalecido com medidas administrativas, muitas vezes coercitivas, que acabaram retirando até mesmo a liberdade individual tão propagada pelos liberais. O autor argumenta que, embora o movimento laissez-faire tenha sido, em princípio, espontâneo, para manter o sistema minimamente funcional foi necessário criar uma legislação que contraria os próprios princípios liberais.
Um exemplo disso é a oposição dos liberais à assistência social aos trabalhadores durante a Revolução Industrial, pois temiam que isso interferisse na formação do exército de reserva e na oferta de trabalho. Contudo, o pauperismo se agravou a tal ponto que a assistência social tornou-se imprescindível, uma vez que a produtividade de um trabalhador de fábrica passou a ser equivalente à de uma pessoa indigente.
Para Polanyi e outros críticos do mercado autorregulado, como Spencer, Sumner e Mises, o modelo liberal foi uma utopia, cujos avanços foram barrados pela própria autoproteção da sociedade. No entanto, muitos liberais insistiram que o fracasso do liberalismo ocorreu devido à falta de paciência para que o mercado se autoajustasse.
Polanyi destaca que, na década de 1920 (século XX), o modelo de mercado autorregulado foi definitivamente desmascarado. Foi então que atingiu seu auge e subsequente declínio, deixando centenas de milhões de pessoas a sofrer com a inflação e a expropriação. Medidas intervencionistas tornaram-se necessárias. Nos anos 1930, o modelo liberal foi amplamente questionado, especialmente pelos países mais ricos, como França, Inglaterra e Estados Unidos, que começaram a adotar políticas contrárias aos dogmas liberais.
Na década de 1940, Polanyi observa que a derrota do liberalismo se consolidou, com a história evidenciando diversos fracassos do sistema. Ele menciona que, embora a Grã-Bretanha tenha mantido o modelo liberal para a indústria, o liberalismo limitou as ações estratégicas do Estado, o que resultou em desvantagem na guerra. Os países centrais que aderiram ao liberalismo acreditavam que os países ditatoriais estavam fadados ao fracasso por não adotarem o liberalismo econômico.
Mesmo diante do fracasso do modelo liberal, alguns autores liberais continuaram a acusar o fracasso do sistema de mercado autorregulado, sugerindo que o problema foi a falta de aplicação completa dos princípios liberais. Contudo, Polanyi argumenta que as condições degradantes das relações de produção, como a saúde pública, as condições de trabalho e a seguridade social, fizeram com que países com ideologias diferentes adotassem ações antiliberais. O autor cita exemplos como Alemanha (1879), França (1899), Áustria (1883) e Prússia (1853), todos esses países passaram por um período de livre comércio laissez-faire, seguidos de medidas antiliberais.
Polanyi ressalta que os efeitos das políticas liberais geraram um contramovimento espontâneo, que não foi ideológico, mas reuniu diversas correntes. O liberalismo e o laissez-faire, na prática, não eram aplicáveis em condições industriais avançadas, pois os próprios liberais clamaram por intervenção estatal para lidar com as associações de trabalhadores que exigiam melhores salários. Isso demonstra que, na prática, os liberais não rejeitam totalmente a intervenção, desde que seja relativa.
Historicamente, Polanyi afirma que as atividades capitalistas precisaram ser protegidas dos mecanismos autodestrutivos do próprio mercado. Mesmo durante o auge do liberalismo, houve a necessidade de proteger o trabalho, a seguridade social, entre outras áreas. O autor, ao se referir ao período de 1890 a 1940, afirma que “nos últimos 50 anos, a verdadeira origem da fome foi a livre comercialização dos cereais, combinada com a queda dos rendimentos locais” (Polanyi, 2021, p. 221, 242).
Outro ponto importante destacado por Polanyi, e que persiste ainda no século XXI, é que o mal funcionamento do sistema econômico gera fome, pobreza e concentração de renda, o que leva os detentores do poder a criar inimigos imaginários. O autor cita o caso do fascismo de Mussolini e Hitler, que ascenderam ao poder ao afirmar que seu objetivo era livrar a Itália e a Alemanha do bolchevismo russo, quando, na realidade, os bolcheviques não representavam ameaça real aos dois países. Ou seja, o fascismo se aproveitou de uma promessa sem base histórica e concreta para tomar o poder e cometer as atrocidades que marcaram a história.
No tocante à eficácia do liberalismo econômico em gerar melhorias sociais e econômicas, Polanyi refuta essa ideia, apresentando diversas evidências históricas que comprovam que o modelo liberal é uma utopia. O autor observa que, na literatura liberal, o que se encontra são “intermináveis insultos aos governos, políticos e estadistas cuja ignorância, ambição, ganância e preconceito míope haviam sido responsáveis pelas políticas de protecionismo seguidas pela maioria dos países”, apontando estas como as causas do fracasso do liberalismo (Polanyi, 2021, p. 303).
Polanyi também analisa como as relações de produção afetaram o mercado de trabalho e o surgimento de governos populares. Para o autor, quanto mais o mercado de trabalho apertava a vida dos trabalhadores, mais surgiam estratégias de contra-ataque, como a luta pelo direito ao voto. O governo popular, portanto, sempre foi considerado uma ameaça ao capitalismo. Polanyi faz uma interessante crítica à teoria econômica de David Ricardo, que se alinhava com o liberalismo, especialmente no que diz respeito à oposição à intervenção do Estado no trabalho e no dinheiro.
A realidade, no entanto, demonstrou que o mercado financeiro governava pelo pânico. O autor aponta que, apesar das promessas liberais de um mercado autorregulado, as políticas de intervenção foram necessárias para corrigir os excessos do sistema. Na década de 1930, os próprios liberais, como Polanyi descreve, tiveram que apoiar medidas intervencionistas para baixar preços de monopólios, reduzir tabelas salariais e fazer cortes nos aluguéis, o que contradizia seus princípios de uma economia de mercado livre.
Por fim, Polanyi aponta que, ao longo da história, o fascismo surgiu como uma “saída fácil” para o impasse institucional causado pela falência do sistema de mercado. O fascismo foi utilizado como uma forma de reforma do sistema de mercado, dissolvendo instituições democráticas e promovendo um controle econômico centralizado. Mesmo que o fascismo tenha se espalhado na Europa nos anos 1920, ele não teve um antecedente único, mas surgiu de características estruturais não resolvidas pelo sistema econômico.
Polanyi conclui que tanto o fascismo quanto o socialismo possuem raízes em uma sociedade de mercado que se recusa a funcionar. O autor discute os movimentos contrarrevolucionários, como o revisionismo nacionalista, que caracterizam uma reação contra as forças sociais, políticas e econômicas que questionavam a ordem estabelecida.
O fascismo, portanto, se instalou na Alemanha e na Itália devido a problemas estruturais não resolvidos pelo sistema econômico. A crise do sistema de mercado nos anos 1930 permitiu que o fascismo se tornasse uma força política mundial. Esse fenômeno, segundo Polanyi, foi resultado de um sistema econômico falido, que empurrou tanto os bolcheviques quanto os fascistas para o abismo, gerando as condições para um novo tipo de controle político e econômico.
Referências bibliográficas da resenha
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origwns polírticas e econômicas de nossa época. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021. 411 p. Tradução de Vera Ribeiro – Revisão técnica César Benjamin- Prefácio Joseph E. Stiglitz. Introduçao Fred Block.
Referências bibliográficas complementares utilizadas
BURNS, Edward McNall. HIstória da civilização Ocidental: do home das cavernas ao homem boma o drama da raça humana. 10. ed. Porto Alegre: Globo, 1971. Tradução de Lourival Gomes Machado, Lourdes Santos Machado e Leonel Vallandro.
CHANG, Ha Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Unesp, 2004. 267 p. Tradução de Luiz Antonio Oliveira de Araujo.
FARIAS, Fernando Rodrigo. Nota qualitativa do livro – Como os países ricos ficaram ricos… e por que os países pobres continuam pobres – Erik S. Reinert. 2024. Resenha publicada no Observa-geo. Disponível em: https://obgeo.ufms.br/. Acesso em: 04 fev. 2025.
Notas explicativas utilizadas como complemento
[1] Para o aprofundamento sobre a natureza das recomendações que os países centrais normalmente recomendam para a periferia, ou seja, as chamadas “boas políticas” e “políticas ruins” recomendamos as obras de Há-Joon Chand – “Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica” e Erik S. Reinert “Como os países ricos picaram ricos e por que os países pobres continuam pobre”. Este último possui resenha elaborada – https://obgeo.ufms.br/notas-resenhas-e-estudos-dirigidos/
[2] Para acrescentar esta passagem, consultamos o texto de um capítulo sobre a Revolução Francesa na obra de Edward McNall Burns (História da Civilização Ocidental, 1971, Editora Globo, volume II), no qual ele mostra que a Revolução Francesa teve três grandes fases:
1ª fase – De junho de 1789 a agosto de 1792, período considerado moderado, mas com algumas ações que marcaram a época, como a demolição de castelos, saques de mosteiros e residências de bispos, assassinato de alguns aristocratas e grande terror às classes superiores, que foram forçadas a abrir mão de alguns privilégios, resultando na demolição dos remanescentes do feudalismo por meio da conquista da Assembleia Nacional de 1789.
2ª fase – Iniciada no verão de 1792, houve nesta fase a suspensão dos poderes do Rei por meio da Assembleia Legislativa, a redação de uma nova constituição, a execução do rei e massacres.
3ª fase – Marcada pela diminuição do movimento radical em relação à 2ª fase da revolução. Nesta fase, a revolução havia consumido “seus próprios filhos”, como afirma Burns. Aos poucos, a revolução passou a refletir os interesses da burguesia, e uma nova constituição foi estabelecida, considerada a menos importante em termos de avanços nos interesses revolucionários.”
[3] Segundo Burns (1971.p, 827), a Primeira Guerra Mundial gerou inúmeros problemas novos, colocou em xeque o futuro da humanidade. Tornou-se doença grave algumas estruturas que impediam o mundo a se desenvolver a exemplo do militarismo, alterou o equilíbrio econômico das nações industrializadas, intensificou o problema da inflação gerando crises e depressões. Embora a vitória dos aliados deu fôlego temporariamente a democracia, “seu fruto final foi uma série de ditadores que se alçaram ao poder nas nações derrotadas e insatisfeitas”. Além disso, em 1939 explodiu todo ressentimento acumulado gerando uma nova guerra.